A moça, os papéis, e a vida
Daniela Marchi
A moça trabalhava. Em meio à papelada, nem pensava na vida, na falta de dinheiro, na falta de amor. Pensava apenas na papelada. Os prazos são exíguos, a papelada precisa andar, precisa chegar em outras repartições, onde outras papeladas responderão às petições de suas papeladas para dar continuidade ao grande ciclo da burocracia. Quanto papel, quantas vias dos mesmos papéis, um pecado, desrespeito à natureza e ao espírito prático: papéis, papéis...
Nem tudo na rotina profissional da moça são papéis. Também tem as pessoas. As pessoas do trabalho: umas (poucas) bastante preocupadas com os papéis e como eles podem resolver as vidas das pessoas; e outras (maioria), mas afeitas a colocar os papéis por baixo dos panos, em falar bonito e produzir pouco.
Papéis, papéis... Será que a mente e os sentimentos da moça também ficaram burocratizados? Quem sabe? O fato é que as exigências e o excesso de formalismo sentimental fizeram dela uma criatura só. Agora só existem eles, os papéis, papéis fiéis, a quem ela se refere como filhos, por vezes. Cuidado com meus filhos (papéis), carregue-os com cuidado! Fardos de uma profissão ou de uma existência? Papéis...
Até a aparência perdeu campo para os papéis. Ao acordar de manhã, só pensa em papéis e nas tarefas urgentes que precisa fazer quando está longe deles, os papéis. Que se lasquem o brinco o batom. Só esquece dos papéis pela família porque, se não fosse assim, a moça teria até perdido os sentimentos para os papéis.
Chegou altura da vida em que a frustração sufocou a moça: papéis, sim, papéis. Papéis bem escritos, elaborados. Expedientes caprichados e dentro dos prazos mas, na alma da moça, sentimentos empoeirados.
Entre um e outro papel, a leitura de um livro. Ocupar a mente é excelente exercício para não pensar em si mesma e assim a moça vai enganando as carências.
Será que tudo na vida da moça estacionou, burocratizou, empoeirou e se encheu de ácaros?
Em meio ao ritmo frenético e a tantos papéis, a moça é atingida em cheio por olhares súplices. Não! – pensou - não tenho nada a oferecer; mexo com papéis, ganho muito menos do que merecia, não vou me desgastar!
Não adianta! O espírito humano se recusa a estacionar. A moça, mesmo com a alma machucada, sente que pode fazer muito mais do que mexer com papéis. Quantas vezes na vida a moça tropeçou, caiu e levantou? Foram tantas que ela perdeu a conta. Choro, mágoa, dor. Os papéis, por sua vez, não causam nada disso e mexer com eles é melhor. Dá para bulir de todo o jeito e eles nem reclamam, não se revoltam. Sempre calados, estáveis. Melhor ficar com eles...
- Eu tenho espírito, tenho objetivos?, pensava a moça. E o espírito falava: - Não desista!, mas ela ignorava.
Contudo, não adianta se isolar de seus pares. Papéis se juntam com papéis. Seres humanos precisam de outros. Em meio ao atoleiro de papeladas, a moça ainda sente que alguém precisa de seus dotes ‘humanos’.
Na lida com as gentes do caminho, sentiu-se imbuída a ajudar. Tratar com papéis é bom, eles não trazem aborrecimento, mas também não trazem retorno emocional.
A moça ajudou a pessoa de olhar súplice. No começo, o súplice parecia nem merecer, mas a moça não julgou, apenas ajudou. O que parecia pouco para ela, foi muito para o outro. Do coração não mais súplice e agora saciado de atenção, brotaram palavras de agradecimento. A moça se sentiu viva, importante e descobriu que a vida espera dela muito mais, ainda que os papéis mereçam toda a consideração.
A moça sentiu que a centelha de Deus pulsa em seu interior.
A moça, na verdade, nem é mais tão moça. Apenas uma violeta velha sem um colibri, como disse o poeta baiano.
Mas, e o coração da moça? Que bom, ele ainda sente!
Daniela Marchi.
Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=441321319262118&set=a.405750446152539.94066.100001527623936&type=3&theater
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