
Você faz questão de um cão de raça? Pense duas vezes...
por Sérgio Greif (biólogo)
 
 
É  bastante comum que na busca pela companhia de animais utilizemos  critérios raciais como determinante de escolha. Isso não acontece à toa,  vamos à livraria para pesquisar sobre cães e os livros nos dizem qual  raça é boa para apartamento, qual raça é boa para se ter com crianças,  qual raça fornece bons cães de guarda . . . Os pacotes de rações para  cães trazem sempre imagens de rottweilers, labradores, cocker spaniels  ou dachshunds, sempre cães de raça; igualmente as propagandas de  produtos voltados para esse mercado ou que utilizam cães apesar do  produto não estar relacionado.
Há, portanto, um apelo para que  "consumamos" cães de raça e para que, por outro lado, desprezemos cães  que não sejam de raça. É verdade que esse "estigma do cão vira-lata"  esteja menos forte atualmente do que estava 15-20 anos atrás, mas ele  ainda persiste. 
Por outro lado,  tendemos a considerar errado julgar as pessoas por sua raça. Pessoas  normais não escolhem, por exemplo, ter amigos brancos ou japoneses e  desprezam possíveis amigos negros ou índios, apenas com base em  critérios raciais. Tampouco não vemos com bons olhos publicações que  tentam associar determinadas raças humanas com determinados padrões de  comportamento. E mesmo que possamos definir com certa precisão nossa  linhagem ancestral, não é de bom tom sustentarmos isso como indício de  superioridade ou em conotação de pureza. E se isso não é bom ou certo no  caso de seres humanos, também não o é em relação aos cães e outros  animais.
O que são os cães de raça?
  
  Como no caso das raças  humanas, não há uma sustentação científica para o conceito de raças  caninas. Todos os cães pertencem à espécie Canis familiaris (ou mais  recentemente Canis lupus familiaris) e descendem de lobos cinzentos  (Canis lupus), que foram domesticados provavelmente há 100 mil anos.
  Do lobo para o cão há  uma grande diferença, mas 100 mil anos de seleção artificial foram  suficientes para que o ser humano desenvolvesse milhares de variedades  de cães. Os primeiros critérios adotados pelo ser humano para a seleção  de animais de companhia foram sua mansidão. 
    No entanto, quando  consideramos geneticamente, o conceito de raças caninas não faz sentido.  O que existe sim são grupos de animais cruzados seguidamente entre si  para expressar determinadas características que lhes confere visível  semelhança, e algumas vezes a propensão a determinada índole. Mas é só.
  Exceto por uma  acentuada aparência externa, nada distingue uma raça canina de outra.  Existem, obviamente, linhagens que são maiores e linhagens que são  menores, linhagens mais agitadas e menos agitadas, linhagens que se  morderem alguém causarão um estrago maior do que outras, até por sua  força física . . . mas todas essas características podem ser encontradas  também em cães chamados "sem raça definida" - SRD.
  Uma pessoa que busca  simplesmente um companheiro canino não precisa adquirir um guia de raças  que garante que tal linhagem expressa determinado comportamento, não  precisa ir a um canil adquirir um cão com pedigree por um preço que pode  variam de R$ 200 a R$ 2.000, até porque amigos não se compram.
  O que determina que cães são de raça?
  O que determina que  certo cão pertence a certa raça é um critério absolutamente artificial.  Cães não se reconhecem a si mesmos como pertencentes a raças distintas,  como ocorre no caso de raças surgidas de maneira natural. Mas se não é  algo natural, de que forma os critérios raciais surgiram para cães?
  Desde sua domesticação,  os cães foram empregados pelo ser humano em diferentes serviços  (pastoreio, boieiros, caça de pequenos e grandes animais, caça de aves  aquáticas, farejadores, guarda, corrida, etc.). Mesmo sem conhecer os  fundamentos da genética antes de Mendel, o ser humano sabia, por fatores  empíricos, que se cruzasse cães com determinadas características e  aptidões teria maior chance de encontrar essas mesmas características em  suas proles.
  Esse processo se  acentuou ainda mais a partir do surgimento dos Kennel Clubs, no século  XIX. Desde então, cães já não eram mais cruzados para fornecer animais  mais aptos para realizar trabalhos, mas simplesmente como hobby, com o  intuito de selecionar os que expressassem determinadas características  físicas. Para alcançar as características desejadas, valia até mesmo  apelar para o endocruzamento, ou seja, o cruzamento entre irmãos, país e  filhos, avôs e netos, etc.
  Os Kennel Clubs criaram  o sistema de registro de raças, onde das milhares de linhagens  selecionadas ao longo destes 100 mil anos de domesticação e que  persistiram até os dias de hoje, entre 150 e 400 variedades são hoje  reconhecidas como raças (o reconhecimento de uma determinada linhagem  como raça varia de Kennel Club para Kennel Club).
  Uma pessoa que pegue um  livro sobre raças caninas do mundo inteiro poderá identificar nas fotos  determinados padrões de cães conhecidos e que nem mesmo sabia  pertencerem a raças. Isso porque esse padrão racial somente é  reconhecido em determinadas localidades, por determinados Kennel Clubs.  Vira-latas poderiam, portanto, ser incluídos dentro de determinadas  raças, ainda que não pudessem ser considerados puros, por desconhecermos  sua procedência.
  Apenas esses fatos já servem para demonstrar que o conceito de raças caninas não é um conceito bem fundamentado.
  Consequências do repetido endocruzamento de cães
  Embora a seleção  artificial de cães remonte ao paleolítico, o conceito de raças caninas,  que devem obedecer a determinados padrões, possui menos de 150 anos.  Algumas raças atuais remontam a tempos bastante remotos, no entanto  essas raças, como dito, formaram-se a partir de diversos animais  distintos que expressavam determinadas aptidões e características. Não  havia uma pressão para que os cães não se misturassem com outras  linhagens e endocruzamentos praticamente não ocorriam, e quando  ocorriam, eram acidentais.
  Mesmo sem conhecer os  mecanismos da genética, o ser humano sempre soube, de maneira empírica,  que o cruzamento entre irmãos ou entre pais e filhos criava uma prole  mais frágil. Hoje sabemos que isso acontece porque com o endocruzamento  aumenta a possibilidade de que genes raros recessivos se manifestem no  organismo. Quando existe uma variabilidade genética, mesmo com a  presença de genes raros deletérios na população, estes raramente se  manifestam, porque a própria seleção natural cuida de eliminá-los. Mas  quando a variabilidade genética é pequena, e os animais se cruzam apenas  entre si, então surgem as doenças.
  Podemos dizer que todos  os schnauzers, poodles, dachshounds, cockers, weimaraners e bulldogs  são parentes entre si. Não parentes no sentido que todos os cães são  entre si, ou que todos os seres humanos são entre si. Eles são parentes  em primeiro grau, no máximo em segundo grau. Um cão maltês que nasce na  França é praticamente um irmão de sangue de um cão maltês que nasce no  Brasil. Há pouquíssima variabilidade dentro desses grupos.
  As consequências dessa  baixa variabilidade genética dentro das raças caninas é a grande  ocorrência de defeitos congênitos (nascimento de animais com defeitos de  formação), a manifestação de doenças e a baixa longevidade.
  Existem mais de 500  doenças genéticas conhecidas nos cães, todas elas associadas à baixa  variabilidade genética existente dentro das raças. Raças como os poodles  apresentam diversas doenças endócrinas, tumores de mama, hidrocefalia,  epilepsia e outras doenças. Cockers manifestam grande incidência de  cataratas, glaucomas e doenças da retina, doenças dos rins e displasia  coxo-femural.
  Pit bulls, rottweilers e  pastores alemães também apresentam maior incidência de displasia  coxo-femural. Outras doenças características do pit bull são a sarna  demodécica, problemas de rompimento do ligamento cruzado e parvovirose. A  parvovirose também incide com maior frequência em Rottweilers, que  também sofrem com maior frequência de problemas relacionados ao complexo  gastroentérico. Pastores alemães manifestam maior incidência de ataxia,  epilepsia, doença de Von Willebrand (problemas de coagulação),  cegueiras causadas por pannus oftálmico ou queratite superficial  crônica. Labradores são acometidos por cerca de 20 doenças genéticas,  entre elas displasia coxo femoral, retinal, catarata, ausência de  testículo, etc.
  Dachshunds apresentam  alta incidência de artrite. Além disso, sua coluna longa ocasiona em  maior incidência de problemas de coluna, hérnia de disco, eles são mais  propensos a desenvolver problema de cálculos renais, tumores mamários e  otites. Como os animais com pernas mais curtas são mais valorizados,  essa característica é selecionada pelos criadores, ocasionando em  animais com pernas tão curtas que acabam arrastando a barriga e as  orelhas no chão. Entre os yorkshires existe maior propensão à  endocardiose, hidrocefalia, diversas afecções dermatológicas,  musculoesqueléticas, cânceres de testículo e de hipófise, colabamento  traqueal, hiperadrenocorticismo, nefropatias e afecções urinárias  diversas, várias gastroenteropatias, catarata, atrofia da retina,  distrofia da córnea, conjuntivite. O pinscher, além da sarna demodécica,  com frequência apresenta epilepsia, problemas cardíacos e problemas de  luxação de patela (rótula), que pode até demandar uma cirurgia.
  Além dessas doenças  genéticas, há ainda outro problema relacionado ao cruzamento endogâmico,  que é o favorecimento de características estéticas que resultam em  comprometimento da vida do animal. Por exemplo, o padrão de raça  estabelecido para dachshunds diz que quanto mais baixinho, melhor. Então  o criador busca produzir animais que literalmente se arrastam pelo  chão, pois esses são mais valorizados. É óbvio que para o animal isso  resulta em péssimas condições de vida e muitos desses "salsichinhas" até  evitam se locomover muito. Cães da raça rhodesian ridgeback necessitam,  por padrões raciais, apresentar uma faixa saliente no dorso, e para  isso que são selecionados. Essa faixa apenas se forma no animal como  consequência de uma espinha bífida, portanto, selecionar animais para  que apresentem essa crista nas costas é selecionar para que nasçam com  esse problema. Essa crista ainda propicia que um quisto (sino dermóide)  se desenvolva entre os tecidos subcutâneos e o tecido muscular, causando  infecção. Nos canis comerciais, quando um rhodesian ridgeback nasce sem  a crista, frequentemente ele é morto antes que a noticia se espalhe.  Isso é indício de comprometimento da qualidade do plantel.
  Raças como o sharpei e o  mastiff napolitano tem como padrão racial a necessidade de apresentar  pregas na pele. E quanto mais pregas melhor. Ocorre que essas pregas são  regiões propensas ao acúmulo de sujeira e umidade e, como consequência,  ao surgimento de dermatite, seborréia e micoses. Além disso, pregas  demais limitam os movimentos do animal, comprometendo também sua visão.  Muitas vezes são necessárias cirurgias para remover pregas da frente dos  olhos. Adicionalmente, sharpeis apresentam problemas de tireóide,  problemas de pele e pelo e mal funcionamento do fígado e dos rins, o que  ocasiona em dificuldade de biotransformar e eliminar toxinas do  organismo. Sharpeis também com frequência apresentam mordedura prognata,  ou seja, os incisivos da arcada inferior se fecham à frente dos  incisivos da arcada superior.
  Algumas raças de cães,  como os bulldogs, o boxer, o pequinês e o pug apresentam mordedura  prognata como padrão de sua raça. Em muitos casos o prognatismo é tão  acentuado que, mesmo quando o cão está com a boca fechada, pode-se ver  seus dentes e a língua. No padrão dessas raças também há uma valorização  de animais com cabeça curta, alta e enrugada, focinho curto, enrugado e  voltado para cima, com narinas amplas, o que torna sua respiração  pesada e difícil. Com frequência esses animais apresentam prolapso dos  olhos (olhos saltados da órbita, ou caídos) e pernas tortas. Esses  animais tem maior propensão a apresentarem problemas cardíacos, com  grande incidência de cânceres, problemas articulares e epilepsia.
  Portanto, ao buscarmos  por animais que obedecem a determinados padrões raciais estamos buscando  pela expressão de características artificialmente selecionadas e que  com frequência representam doenças e má qualidade de vida para o animal.  Ao selecionar animais de acordo com suas características raciais,  agimos como nazistas ou eugenistas, que estabeleceram padrões para a  forma como seres humanos devem ser. Além disso, agindo dessa forma  estamos contribuindo para toda uma cadeia de negócios fundamentada na  exploração animal.
  
A exploração dos cães de raça
  Quem pensa em cães como  companheiros, melhores amigos do homem, etc., deve pensar duas vezes  antes de comprar um cão em um pet shop. Cães vendidos em pet shops  possuem exatamente os mesmos sentimentos que qualquer outro cão. São  dóceis, companheiros e adoram a companhia humana. Porém, junto com tudo  isso, ao comprar um cão o comprador adquire um certificado de linhagem  (pedigree) e toda a história de sofrimento que está por trás desses  animais. Animais de pet shop podem ser animais fofinhos pelo ponto de  vista do comprador, mas pelo ponto de vista do produtor de animais e do  vendedor, eles são apenas produtos ou mercadorias.
  O objetivo de um  criador de cães é o lucro e ele só alcança esse lucro se conseguir  maximizar sua produção. Para que isso aconteça, ele deve fazer com que  seus cães se reproduzam o máximo possível. Isso significa que cada fêmea  matriz deve ter o máximo de ninhadas no menor tempo possível. Os  filhotes nascidos nessas condições abastecem a "indústria dos animais de  estimação".
 
 Esse YorkShire era o macho de um  "casal matriz", que é como os criadores chamam o casal mantido para  reproduzir. Esse machinho teve seu prepúcio cortado pela criadora, para  que cruzasse mais, e assim, rendesse mais dinheiro. Depois de muito  usado ele foi trocado por um mais jovem e abandonado. A aparência é  horrível e tem que estar sempre passando silicone para que a glande  entre e não resseque causando dores, o que acaba sendo inevitável. 
 Os canis que fornecem  animais de raça para abastecer a esse mercado podem variar desde  indivíduos que possuem algumas fêmeas matrizes, até grandes canis  comerciais contendo dezenas, centenas de animais. Em todos os casos,  quem sai perdendo são os cães. Animais são condicionados a viverem por  toda a sua vida em gaiolas recebendo apenas água e alimentos, produzindo  ninhada atrás de ninhada, até que sua vida reprodutiva acabe e seja ela  mesma comercializada ou abandonada em algum local. Filhotes nascidos  sem as características raciais consideradas dentro do padrão ou com  leves imperfeições são mortos de imediato, pois a presença desses  animais na ninhada compromete a imagem das matrizes. Após um breve  período mínimo de amamentação esses animais são encaminhados para pet  shops onde são vendidos para pessoas que mal conhecem sua história de  sofrimento anterior.
 
 
 Imagens de fábricas de filhotes.
  Sim, a exploração de  cães em canis é uma forma de exploração animal tão grave quanto qualquer  outra, E não se trata realmente de fazer uma distinção entre o "bom"  criador e o "mal" criador, ou de criticar o comércio de fundo de quintal  e valorizar o comércio que ocorre sob supervisão de um Kennel Club ou  de alguma entidade de proteção animal. A criação de cães de raça é em si  um erro, porque ela produz animais que em verdade só existem para  atender à futilidade e aos padrões de estética que nós estipulamos.  Seres humanos que de fato gostam de cães não fazem distinção entre cães  de raça e cães sem raça definida.
  Quem deseja um amigo de verdade . . .
  Uma pessoa que  realmente deseja ter um cão como amigo, e não como um produto, uma  mercadoria, não faz distinção entre um cão de raça e um cão sem raça  definida. Os cães são sinceros em sua amizade para conosco, eles não  fazem julgamentos se somos brancos ou negros, altos ou baixos,  milionários ou mendigos, perfeitos ou deficientes, cabeludos ou carecas .  . . eles nos aceitam como somos porque seu amor é desinteressado.
 
  Para que nossa parte da  amizade possa ser tão sincera quanto o é a parte deles, precisamos ser  tão desinteressados quanto eles mesmos. Ter amizade é querer o bem.  Queremos que nossos amigos vivam muito, sejam saudáveis . . . não que  tenham pedigrees e doenças genéticas, ou que satisfaçam nosso ego e  sejam abandonados quando enjoarmos deles. Queremos que nossos amigos  sejam criaturas que vivam conosco porque nos adotamos mutuamente e  porque precisamos deles tanto quanto eles precisam de nós.
  Amigos não se compram.  Se adquirimos nossos amigos de estabelecimentos que lucraram com sua  exploração, nossa parte da amizade não é sincera. Amigos não tem beleza  ou feiúra. Se escolhemos nossos amigos com base em características  estéticas não são amigos o que procuramos. Amigos não são feitos em  formas, não obedecem, a padrões, não tem raça. Eles vem do jeito que  vierem e nós os amamos. Um cão em nossa casa é companhia garantida.  Alegria não de possuir um bem, mas de manter um amigo, compartilhar  nossa vida com alguém por muitos anos.
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  Sérgio Greif  é  Biólogo, mestre em Alimentos e Nutrição, autor de "Alternativas ao Uso  de Animais Vivos na Educação: pela ciência responsável" e co-autor do  livro "A Verdadeira Face da Experimentação Animal: A sua saúde em  perigo".
Material Educativo: para baixar, divulgar e conscientizar!
 Filipeta, folder, panfleto, cartazes e banners!
  
   
   
  
  
 
  
 
 Indicação:  Última atualização ( 15 de Agosto de 2011)
Fonte: 
http://www.uniaolibertariaanimal.com/comercio/racismo